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Eu, Serejo e as lagartixas

DOMINGO
16 JUNHO
A querida Priscila, que comigo divide as alegrias e tristezas do mundo, aos poucos vai se acostumando com as algumas esquisitices minhas. 
Uma é simples, de fácil absorção e para ela foi fichinha; duas são complicadas.
A simples é banho de mar, que adoro, ela detestava, mesmo tendo vindo do Ceará, das belas praias de Fortaleza. De tanto ver meu gosto por mar, acabou gostando.
As duas complicadas: gostar dos sapos e das lagartixas. São animais inofensivos, que ajudam na limpeza do meio ambiente. 
Tenho viva na memória a cena da minha vovó Regina, mãe da minha mãe, que gostava de desenhar lagartixas, cortando com os dedos, numa folha de papel. Ficava perfeito. Adorava quando ela me presenteava com aqueles desenhos. Alguns, guardava nos livros da escola.
Pois bem, descobri outra pessoa que também gosta das lagartixas. Meu professor dos bons tempos na UFRN, um dos poucos cronistas diários de jornal impresso no Brasil, frise-se (escreve diariamente na Tribuna do Norte sua coluna Cena Urbana), Vicente Serejo. Tomo emprestada sua crônica deste domingo, tratando delas, as lagartixas.
Segue: 

Tenho certa ternura pelas lagartixas. Um dia, li uma história que Ney Leandro contou, ele que foi sempre um bom ficcionista. Não sei se criou ou se já andava nos ouvidos do mundo. Um boêmio, numa manhã de ressaca, viu lagartixas coloridas passando no muro do quintal. Intrigado, pensou que estava na fase do delirium tremem. Só alguns dias depois, descobriu que um pintor de carros, da oficina vizinha, coloria as lagartixas com a pistola que usava para pintar os automóveis.
Mas, para ser sincero, o que admiro nelas é a humildade que tanto falta aos bichos bonitos e vistosos, e a nós mesmos, os ditos animais racionais. Por isso, gostei muito da descoberta, outro dia, nas páginas da Folha de S. Paulo, assinada por Marcella Franco. É que a ciência constatou que as lagartixas devoram o mosquito da dengue, o que é um grande serviço à humanidade. E mais, como se não bastassem, e os próprios cientistas atestam: não fazem mal nenhum ao ser humano.
Não diria, Senhor Redator, só por vaidade, que esta caverna tão bem cercada de verdes por todos os lados, não tem lagartixas. Tem. Várias. Mas as nossas lagartixas não costumam passear pela folhagem, nos brancos lírios da paz ou nas suas poucas orquídeas. Andam no alto dos muros e, algumas vezes, vão à caça nos galhos do Pau Brasil que há anos derrama suas sombras generosas neste chão velho. São sempre atentas, controlam todos os lados e fogem das ameaças sem demora.
Segundo a pesquisa, não bastassem serem predadoras dos mosquitos da dengue, o célebre Aedes Aegypti, conservam, desde as velhíssimas e misteriosas pirâmides do Egito, a bela vocação para o ofício de devorar baratas, o que, de resto, merecem elogios até pelo caráter escabroso. Aliás, diga-se, por dever de justiça, é conhecida por nome popular, mas tem o científico. É justo registrar para todos: Hemidactylus Mabouia. Não é nativa do Brasil, mas do ancestral continente africano.
Por confessado descaso, e até culpa, só agora fiquei sabendo: não são elas que se desfazem da cauda se ameaçada por predadores. E ficam mexendo, não como expressão de dor, mas para distrair o agressor e elas possam fugir. O estranho fenômeno tem também a definição científica: chama-se autotomia caudal. O detalhe é que essa é uma propriedade das lagartixas, o mecanismo de defesa que sempre acaba salvando as suas vidas. E elas sabem que sua cauda crescerá de novo.
Não quero fazer da lagartixa uma figura célebre. Seria agredir sua bela qualidade que é ser humilde, e por ser feliz como é. Mas, bem que poderia ser criada por lei e à unanimidade, a Ordem da Lagartixa. Para o adorno das lapelas das nossas cavaleiras habilidosas nos jogos sociais, como as lagartixas. Quando ameaçadas de algum flagrante do falso, também soltam seus silêncios que enganam aos tolos. E assim vivem felizes na ribalta, eternas e fagueiras, sob a luz dos refletores.

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